sábado, 4 de agosto de 2012

O passarinho feio



 Quando era mais novo morava em uma vila na rua cinquenta e sete, o lugar mais triste para se viver. As árvores recebiam o silêncio da prefeitura e por isso eram secas e desnutridas, como essas crianças que vemos na África hoje em dia. Quase não fazia sol, o clima não era frio e por isso a sensação era de que sempre havia chovido. "Umidade em alta" - dizia os noticiários. Poucas casas, e vizinhos tão ranzinzas que os enxergava em preto e branco.

Minha família morava lá por falta de opção. Meus avós também eram pessoas em preto e branco, mas meus pais nasceram coloridos, e acho que eles também me enxergavam colorido. A única cantoria que se ouvia na rua cinquenta e sete era as do galo do Sr. Arnaldo - meu vizinho do lado esquerdo. Não era uma cantoria feliz. Pibou, tinha perdido uma das pernas em uma dessas brigas de galo de cidadezinhas vizinhas e seu cacarejar aparentava mais um pedido de socorro do que bom dia.

Naquela época não existia televisão, internet ou essas coisas pequenas que as pessoas levam nos bolsos. Sou um homem muito velho e tudo o que tive na minha vida desde criança foi minha imaginação e um pouco de memória na gaveta.

E foi de uma das minhas gavetas mais empoeiradas que me recordei de Volgo, meu passarinho de estimação.

Costumava ser um moleque que andava pelos quatro cantos da cidade e sempre descobria um novo lugar para se distrair. Uma dessas vezes quando percorria o bosque da mansão Peixoto, após ter entrado pelo muro sem ser percebido, me deparei com um passarinho preto jogado sem jeito no portão do jardim. Me aproximei e percebi sua asa quebrada e um pouco de sangue em seu bico. Não era um pássaro bonito, poderia muito bem se tornar protagonista de um desses filmes do Hitchcock sobre aves que matam e assombram toda uma cidade.

Mesmo assim levei para casa. Sabia que os meus pais iriam vir com o discurso de doenças que bichos de rua transmitem, por isso o escondi. Sei que se fosse um gatinho ou um cachorrinho eles me deixariam ficar com Volgo, mas ele era um pássaro feio e tudo que consideravam feio era ignorado.

Não foi difícil consertar sua asa quebrada, pelo contrário, tive aulas de primeiros socorros na escola quando criança e ele era um bom pássaro, quase não tentava fugir.

Depois de meses Volgo fugiu. Cheguei da escola e encontrei sua gaiola aberta e vazia com todo o alpiste que havia deixado naquela manhã. Sempre deixei sua gaiola aberta, nunca tentei segura-lo comigo, não queria que ele fosse um pássaro triste de uma cidade triste. Só que depois de tanto tempo comigo, andando em meu ombro e comendo a comida do pet shop da esquina... pensei que nunca partiria.

Claro que com a gaiola aberta ele dava voltas pela cidade, mas sempre voltava. Quando ele partiu meus pais pensaram que me encontrava em crise de adolescência, uma garota tinha partido meu coração ou coisa do tipo. Foi com Volgo que aprendi a lidar com a liberdade e que soube que o amor só é difícil quando acreditamos que ele nunca vai embora.

Ele era um pássaro feio de uma cidade triste com pessoas em preto e branco, que ocupou um dos lugares mais coloridos do meu coração. Pode ser só uma história de um velho solitário sentado na varanda de sua casa, mas perdi a conta de quantos passarinhos passaram por minha vida e queriam ter a liberdade de Volgo.


Talvez o amor tenha mesmo cheiro de liberdade.

Ou quem sabe, só aquela tal presença de saudade.



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